quarta-feira, 6 de fevereiro de 2008

Uma questão de fé

Chovia naquela penúltima noite do ano, na areia da praia molhada pela chuva, os "filhos" de santo preparavam a cerimônia para despedida de mais um ano. Uma a uma, cada imagem era ajeitada num altar improvisado, enquanto uma jovem de cabelos loiros vestida como Iemanjá, ajeitava-se em um banquinho desconfortável. Não demorou muito, e as pessoas começaram a rodear aquele círculo formado pelos "filhos" de santo que iniciavam a chamada “gira”.

Ainda chovia quando os atabaques começaram a dar o ritmo para os pontos de cada santo, e entre todas aquelas pessoas que circundavam a roda, umas exprimindo sua fé, outras nem tanto, e outras tantas apenas assistindo por pura curiosidade, uma pessoa se destacou.

O corpo franzino daquela moradora de rua, de pele escura, e que acompanhava com palmas o som dos atabaques, logo chamou a atenção, principalmente pelo jeito natural com que se manifestava a cada cântico entoado, aquilo lhe era familiar, como já tivesse feito parte daquele ritual outras vezes.

Um a um, cada "filho" de santo recebia os seus orixás, seus caboclos, seus baianos, seus marinheiros, seus exus e pombas-gíras, e aquela moradora de rua, ali, derramando sua fé, como quem não tivesse perdido as esperanças de abandonar aquela vida a qual parecia estar condenada.

E ao fim, enquanto a mãe de santo organizava com os seus “filhos”, o cortejo em que a jovem vestida de Iemanjá seria conduzida, juntamente com uma pequena embarcação cheias de oferendas que se seriam entregues para a Rainha do Mar, aquela moradora, apanhou uma rosa que havia caído no chão, e respeitosamente, colocou-a dentro da embarcação.

Como uma procissão, a mãe de santo e seus “filhos”, seguiram juntamente com a jovem vestida de Iemanjá em direção ao mar, e todos aqueles que acompanhavam todo o ritual, crentes, descrentes e curiosos, trataram, por via das dúvidas, de seguir o cortejo e jogar ao mar, flores e champanhe para Iemanjá.

Perdida no meio daquele gente toda, que ao fim do ritual, eram com certeza, uma centena, a moradora de rua, com seu corpo franzino e sua feição sofrida, entrou no mar, pulou as setes ondas, saldou Iemanjá, e saiu cheia de fé, certa que seu ano novo seria diferente.

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